(2023) - Calendário 2023

CORES E TONS DA TRAVESSIA 

O mar, no seu fluir incessante, meio de partidas e chegadas, tem forte e intensa presença na arte, em nossas vidas. Em sua polifonia de sentidos, em diferentes mitologias, envolve a dinâmica da vida e da morte.

Acreditando que o fio das histórias se entrelaça ao fio das memórias, compartilhamos com as mães/bordadeiras da ACTC - Casa do Coração fragmentos da obra "A Odisséia", de Homero, do século VII a. C. Numa íntima relação do herói grego Odisseu com o mar, retrata-se sua viagem de volta a Ítaca para reencontrar sua família, após vencer a guerra de Tróia. Essa narrativa repleta de aventuras, desafios e presença de seres mitológicos traz uma reflexão profunda sobre o Homem e sua perseverança em direção a um objetivo. 

Como o Herói Odisseu, em sua determinação obstinada para preservar a própria vida e retornar para a família, na ACTC - Casa do Coração, metaforicamente as mães também são lançadas ao mar, numa viagem desconhecida, muitas vezes sem recursos internos nem externos. 

Diante da busca pela cura e pela vida do filho, precisam partir sem saber quando voltarão. Nesse deslocar, momentaneamente, abrem mão de suas vidas, deparando-se com uma situação provisória, desconhecida, incerta.

Literatura e bordado se enlaçam no projeto Travessias.  As mães bordam, então, suas histórias, suas odisséias... Envolvidas nesse exercício de tessitura de cenas, realizam sua travessia, num encontro íntimo com as próprias emoções. 

Nesse percurso, às vezes em mar aberto, encontram ilhas onde ancoram sua dor... Assim, a casa do coração acolhe e conforta, dando sustentação à esperança que, muitas vezes se impõe. Mas há que se seguir em frente, a travessia é contínua...

Na odisséia de suas vidas, como Penélope, que tece enquanto espera, o bordado pode ser visto como resistência ao desamparo e à dor, na construção de narrativas carregadas de emoções.

Em suas errâncias, essas mulheres terão de se confrontar consigo mesmas, com seu mundo interno, com o imprevisível. 

Diz Guimaraes Rosa, ?Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia?.  Para essas mulheres, a travessia traz a esperança e a incerteza diante da vulnerabilidade da vida. Lutam pela vida do filho, sem saber o que encontrarão.  Apostam no fazer, no transformar e no remendar-se.

Viver é urdir a trama da existência. Os dias ritmados e marcados pelo ir e vir das linhas, às vezes se emaranham e se rompem. 

Os oceanos são lugares a serem atravessados, a dor dilacerante precisa ser vencida...  é preciso lançar luz às sombras. O bordar traz devaneios e um fantasiar propiciador de paz.

A Odisseia é a viagem de todos nós. No embate criativo de mãos, gestos, linhas e cores brota um mar de histórias, marcado pela ambivalência e pela tentativa de nomear o indizível.

Azul céu, azul mar, profusão de azuis, ondas tempestuosas ou calmas, escuridão, algumas vezes pontilhada de pequenas luzes, traduzem o ir e vir da vida, agora simbolizados nos bordados.

Na poesia do bordado, no retrato de instantes dolorosos de dor e perda, as mães exercitam sua capacidade criadora, matizando cores, iluminando caminhos, pespontando e cerzindo angústias, costurando a fé, tramando e alinhavando sonhos. 

Tendo como fio condutor a esperança, vão tecendo novas paisagens, novos sentidos para aquilo a que chamamos vida...